Além da MP praticamente extinguir o adicional de periculosidade, cria um obstáculo quase intransponível para reconhecimento do direito.
Por meio da Medida Provisória nº 905, de 11/11/2019, o governo instituiu nova modalidade de contrato de trabalho, que denominou de Contrato de Trabalho Verde Amarelo, no intuito, segundo consta da Exposição de Motivos, de simplificar a contratação do trabalhador, diminuir os custos de contratação e dar maior flexibilidade ao contrato de trabalho, com a pretensão de reduzir o desemprego (12%) e o trabalho informal (41,4%).
Sustenta o governo que sua iniciativa visa criar oportunidades para a população entre 18 e 29 anos que nunca teve vínculo formal, pois que dos 12,6 milhões de pessoas desocupadas no País, 5,7 milhões são jovens nessa faixa etária, cuja taxa de desemprego é de 20,8%.
A fim de reduzir os custos de contratação, a Medida Provisória prevê que as empresas ficam isentas do recolhimento da contribuição previdenciária sobre a folha de pagamento, salário-educação e contribuição social para os integrantes do Sistema “S”, Sebrae e Incra, e que, em relação ao FGTS, a alíquota de contribuição fica reduzida de 8% para 2% e a multa indenizatória, no caso de rescisão, de 40% para 20%.
O governo justifica que essa desoneração será compensada por meio de aumento de receita obtido com contribuição previdenciária (de 7,5%) sobre os valores pagos aos beneficiários do seguro-desemprego, portanto, em mais uma tentativa de financiar suas políticas econômicas através de saque de direitos dos trabalhadores, ao invés de financiá-las com recurso do capital, especialmente do financeiro, cujos lucros são cada vez mais altos.
Dispõe ainda a Medida Provisória, em seu art. 15, com o mesmo propósito de redução dos custos de contratação, que o empregador pode contratar, mediante acordo individual escrito com o trabalhador, seguro privado de acidentes pessoais em substituição ao adicional de periculosidade, com a menção de que, se o empregador optar pela contratação do seguro, permanecerá obrigado ao pagamento de adicional de periculosidade de 5% sobre o salário-base do trabalhador, não obstante previsto no art. 193 da CLT que o adicional é de 30%.
Quanto ao adicional de periculosidade, importante salientar que o artigo 6º, XXIII, da Constituição Federal, o prevê como remuneração para as atividades perigosas, e que, em consonância com o constituinte, o legislador celetista o estatuiu como acréscimo salarial, evidentemente, com a finalidade de remunerar o estado de risco a que fica sujeito o trabalhador.
De fato, essa foi a intenção do constituinte e do legislador celetista, por ser evidente que o estado de risco, acoplado ao trabalho, tem naturalmente o seu valor econômico e deve receber a devida contrapartida salarial.
Ou alguém, em sã consciência, seria capaz de sustentar que não há, em si, valor econômico no estado de risco ao qual se sujeita o trabalhador, oriundo de inflamáveis, explosivos, energia elétrica, roubos ou outras espécies de violência física nas atividades profissionais de segurança pessoal ou patrimonial? Da mesma forma, em relação a motocicletas ou a atividades de risco em potencial, concernentes a radiações ionizantes ou substâncias radioativas?
E se há valor econômico digno de remuneração nesse estado de risco, o que justifica, à luz do princípio da isonomia, ser esse estado de risco remunerado com adicional de 30% para uns e de 5% para outros? Será que o estado de risco do trabalhador jovem e menos experiente deve ser considerado menos valioso do que o do trabalhador mais experiente?
Mencionado seguro privado de acidentes pessoais, por sua própria natureza, não pode ser confundido com remuneração salarial e, portanto, considerado idôneo juridicamente para substituir o adicional de periculosidade, visto que ele, ao contrário deste, tem caráter compensatório para o caso do empregado, em estado de risco, vier a sofrer infortúnio, nas hipóteses de morte acidental, danos corporais, danos estéticos e danos morais.
Tanto é assim, que o trabalhador com direito ao adicional de periculosidade não tem excluído seu direito a indenização pelo empregador no caso de infortúnio. Fosse de outra forma, o adicional de periculosidade seria considerado remuneratório de eventual redução ou perda da capacidade de trabalho ou da vida do trabalhador, o que não é o caso.
Merece especial atenção o § 2º do art. 15, o qual dispõe que a contratação do seguro não excluirá a indenização a que o empregador está obrigado quando incorrer em dolo ou culpa, porquanto, implicitamente, exclui a obrigação de indenizar, independentemente de culpa, quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua própria natureza, risco para os direitos de outrem (Código Civil, art. 927, § único).
Também digno de registro, por sua hipocrisia jurídica, é a previsão de que o empregador poderá contratar o referido seguro, mediante acordo individual escrito com o trabalhador, com a redução do adicional de periculosidade, ao falso pressuposto de que o jovem trabalhador, em busca do seu primeiro registro na Carteira de Trabalho, se encontra em condições de igualdade com o empregador para negociar. Mutatis mutandis, repete-se de forma piorada a histórica possibilidade de “opção pelo FGTS”, em que todos os trabalhadores assinavam o “termo de opção”, em substituição à estabilidade no emprego, em que pese esta, a princípio, lhe fosse melhor.
Além dessa Medida Provisória praticamente extinguir o direito ao adicional de periculosidade, ela cria um obstáculo quase intransponível para o reconhecimento do direito, ao dispor que ele somente será devido quando houver exposição permanente do trabalhador, com efetivo trabalho em condição de periculosidade, por, no mínimo, cinquenta por cento de sua jornada normal de trabalho.
Sim, pois, se violado esse direito, será do trabalhador o ônus judicial de provar que trabalhou em condições perigosas e que isso aconteceu em pelo menos 50% da jornada, o que não será fácil, tendo em vista, especialmente, os óbices de acesso à justiça criado pela reforma trabalhista.
Ademais, os infortúnios típicos das atividades perigosas, por sua própria natureza, não dependem de longo tempo de exposição a condições perigosas. A explosão de uma bomba de gasolina, por exemplo, pode ocorrer a qualquer momento.
Enfim, por todos os ângulos que se analisam as alterações promovidas pela Medida Provisória nº 905/2019, a conclusão é de que ela empobrece ainda mais os trabalhadores, afastando-os cada vez mais do mercado de consumo, de modo que sua eventual aprovação significará para os empregadores a que se destina, e também, evidentemente, para os empregadores em geral, autêntica “vitória de Pirro”.
Fonte: Carta Capital